quarta-feira, julho 28, 2010

A lista

Faça uma lista de grandes amigos
Quem você mais via há dez anos atrás
Quantos você ainda vê todo dia
Quantos você já não encontra mais...
Faça uma lista dos sonhos que tinha
Quantos você desistiu de sonhar!
Quantos amores jurados pra sempre
Quantos você conseguiu preservar...
Onde você ainda se reconhece
Na foto passada ou no espelho de agora?
Hoje é do jeito que achou que seria
Quantos amigos você jogou fora?
Quantos mistérios que você sondava
Quantos você conseguiu entender?
Quantos segredos que você guardava
Hoje são bobos ninguém quer saber?
Quantas mentiras você condenava?
Quantas você teve que cometer?
Quantos defeitos sanados com o tempo
Eram o melhor que havia em você?
Quantas canções que você não cantava
Hoje assobia pra sobreviver?
Quantas pessoas que você amava
Hoje acredita que amam você?

Oswaldo Montenegro

quarta-feira, julho 21, 2010

EPITÁFIO

Aniversário de oito anos. Vovô carinhosamente me puxou para o canto e me convidou para uma brincadeira de criança. Tinha ali duas mãos enrugadas fechadas e cruzadas entre si, de frente para mim, pedindo para eu escolher em qual delas queria bater. Bati numa e ganhei um espelhinho. Tive uma nova chance. Frio na barriga... Bati na outra: vazia! Fiquei sem palavras... Estava certa de que iria ganhar dois presentes. Meu avô me dissera incialmente que haveria ali duas surpresas. E que surpresas, permeadas ainda por uma escolha.

Aquele espelhinho, apesar de não me servir para tudo, possibilitava que eu viesse a me encontrar refletida nele. Já aquela palma vazia não me refletia, e por isso eu poderia olhar aquele lugar e buscar nele algo que o espelhinho não poderia me oferecer. Ou até vir a me enganar, acreditando que com aquele espelhinho eu poderia tudo, ser dona do mundo! Afinal tinha uma imagem ali que nunca iria me abandonar: tendo nas mãos um rosto que me olhava, eu não mais precisaria olhar para o resto do mundo! Claro, já que teria uma garantia, uma certeza, que se eu me desviasse, e olhasse para fora, poderia me faltar... Ah, e eu poderia ainda me lamentar o resto da vida por ter recebido de presente apenas aquele mísero espelhinho frágil, que poderia vir a cair no chão e quebrar, e ainda ter o azar de reconhecer na mão vazia a ausência total de possibilidades.

Vovô, adorando o fato de eu estar pensando nas voltas que o meu pensamento dava, rodopiando, pôs mais lenha na fogueira: “E se fosse o contrário? E se você tivesse batido primeiro na mão vazia para depois descobrir que ainda poderia vir a ganhar mesmo uma surpresa?” Ah, aí sim o espelhinho ficaria ainda mais importante! Ou não... Ou eu poderia desconfiar que vovô estivesse mentindo para mim, fingindo ter presentes e na verdade estar de mãos vazias e atadas frente a mim. Isso também seria uma escolha: posso pensar isso ou aquilo.

Vovô tentava ali me ensinar os principais valores da vida: possibilidades ou limitações. Possibilidades e limitações. Alegrias e frustrações. Caminhos diferentes, divergentes, convergentes, coincidentes. Conflitos. Escolhas.

E, frente a todo este cenário, concedeu-me a possibilidade de ter a liberdade de escolher o que pensar sobre a vida e o que fazer com ela. O que fazer de mim diante da minha condição humana: como olhar para minha imagem, como perceber possibilidades, como lidar com minhas limitações.

Mas naquele momento, não pude compreender isso: o espelhinho caiu logo da minha mão e se quebrou! E o hino dos meus primos começou: “sete anos de azar, hahaha!!!”. Pronto. Estava ali, eu, sem presente e sem presença. Fechei-me, enclausurei-me, tranquei-me a sete chaves e quase engoli a chave. Passei a achar que a vida não era nada justa comigo, que eu não merecia aquilo, e que o melhor era nem acreditar em mais nada. Minhas lágrimas inundaram-me a perder-me de vista, e eu mal podia me ver naqueles estilhaços de espelho no chão.

Abaixei-me para pegá-los sem nenhum cuidado. Vovô deteve-me. Ensinou-me uma prática lição: vá até o banheiro, lave o rosto e seque-o de frente para o grande espelho. Depois siga até a cozinha, coloque luvas de borracha, pegue uma vassoura e uma pá, varra esses cacos, jogue-os no lixo, guarde todo o material e volte para conversarmos. Sem questionar, logo o fiz. Admirava muito o vovô e considerava-o sábio.

Sentei-me ao seu lado. As lágrimas já não jorravam mais em meu rosto. Dizem mesmo que quando a gente molha as coisas elas diminuem. Reguei a minha dor do jeito que vovô me ensinou e ela encolheu, passando a caber dentro de mim, nas minhas gavetinhas imaginárias. Recebi então um enorme presente ao viver na pele aquela experiência. E ainda fui reconfortada pelas palavras sábias de meu avô:

“Minha netinha querida: na vida, muitos caminhos não irão vingar, nem culminar do modo como você imagina. Eles não serão do modo como você sonhou. E nem por isso você deve deixar de sonhar e ser ingrata com você, nem com a vida. A menos que você queira isso. Quando uma frustração vier, não se deixe abater: arregasse as mangas, proteja-se e enfrente-a. Prepare-se para juntar os cacos e livrar-se deles, com cuidado. E trate de enterrá-los de modo a completar um ciclo, pagando aquela dívida interna de modo maduro. Só assim a imagem inteira do espelho poderá se manter dentro de você. Se você não fizer isso, começará a acumular-se em cacos internos e chegará a se sentir estilhaçada por completo. E se essa for a sua escolha, você terá que arcar com ela, cedo ou tarde.”

Dez anos depois, meu corpo tomou nova forma. Vovô estava largado num leito de hospital. Que injusto: eu tão robusta e ele tão frágil. Reconhecendo a minha impotência diante daquele quadro, não recuei: fui até lá cuidar dele naquele momento tão delicado. Que tristeza... Vovô estava tão envelhecido... Nem parecia o vovô jovem que eu conheci quando criança. Como estava adoecido... Mal conseguia abrir os olhos. Soros, sondas, cateter, urinol, exames, comida mole e sem gosto, enfermeiras, médicos... O barulho daquele ambiente mal o permitia silenciar tamanha dor, e impossibilitava-o de viver tranquilamente seus últimos instantes de vida.

Resolvi fazer daquele momento de finitude um momento de vida. Fiz a brincadeira das mãos para ele e ele sorriu generosamente para mim. Embora quase inteiramente imerso em uma outra dimensão, reconheci ali o seu esforço. Ele bateu numa mão e eu abri: mão vazia. Ele bateu na outra e eu abri e lá estava um pedaço de papel. Tirei uma caneta do bolso e pedi para que ele tentasse dizer suas últimas palavras para que eu pudesse registrar, e quem sabe até deixar por escrito, em letras garrafais, a sua magnitude.

Detive-me diante da maior surpresa da minha vida: num ímpeto de emoção, vovô sugou o ar o mais que pôde e emudeceu para sempre. Eu jamais poderia registrar em palavras aquele glorioso momento.

Cristina Monteiro