Aniversário de oito anos. Vovô carinhosamente me puxou para o canto e me convidou para uma brincadeira de criança. Tinha ali duas mãos enrugadas fechadas e cruzadas entre si, de frente para mim, pedindo para eu escolher em qual delas queria bater. Bati numa e ganhei um espelhinho. Tive uma nova chance. Frio na barriga... Bati na outra: vazia! Fiquei sem palavras... Estava certa de que iria ganhar dois presentes. Meu avô me dissera incialmente que haveria ali duas surpresas. E que surpresas, permeadas ainda por uma escolha.
Aquele espelhinho, apesar de não me servir para tudo, possibilitava que eu viesse a me encontrar refletida nele. Já aquela palma vazia não me refletia, e por isso eu poderia olhar aquele lugar e buscar nele algo que o espelhinho não poderia me oferecer. Ou até vir a me enganar, acreditando que com aquele espelhinho eu poderia tudo, ser dona do mundo! Afinal tinha uma imagem ali que nunca iria me abandonar: tendo nas mãos um rosto que me olhava, eu não mais precisaria olhar para o resto do mundo! Claro, já que teria uma garantia, uma certeza, que se eu me desviasse, e olhasse para fora, poderia me faltar... Ah, e eu poderia ainda me lamentar o resto da vida por ter recebido de presente apenas aquele mísero espelhinho frágil, que poderia vir a cair no chão e quebrar, e ainda ter o azar de reconhecer na mão vazia a ausência total de possibilidades.
Vovô, adorando o fato de eu estar pensando nas voltas que o meu pensamento dava, rodopiando, pôs mais lenha na fogueira: “E se fosse o contrário? E se você tivesse batido primeiro na mão vazia para depois descobrir que ainda poderia vir a ganhar mesmo uma surpresa?” Ah, aí sim o espelhinho ficaria ainda mais importante! Ou não... Ou eu poderia desconfiar que vovô estivesse mentindo para mim, fingindo ter presentes e na verdade estar de mãos vazias e atadas frente a mim. Isso também seria uma escolha: posso pensar isso ou aquilo.
Vovô tentava ali me ensinar os principais valores da vida: possibilidades ou limitações. Possibilidades e limitações. Alegrias e frustrações. Caminhos diferentes, divergentes, convergentes, coincidentes. Conflitos. Escolhas.
E, frente a todo este cenário, concedeu-me a possibilidade de ter a liberdade de escolher o que pensar sobre a vida e o que fazer com ela. O que fazer de mim diante da minha condição humana: como olhar para minha imagem, como perceber possibilidades, como lidar com minhas limitações.
Mas naquele momento, não pude compreender isso: o espelhinho caiu logo da minha mão e se quebrou! E o hino dos meus primos começou: “sete anos de azar, hahaha!!!”. Pronto. Estava ali, eu, sem presente e sem presença. Fechei-me, enclausurei-me, tranquei-me a sete chaves e quase engoli a chave. Passei a achar que a vida não era nada justa comigo, que eu não merecia aquilo, e que o melhor era nem acreditar em mais nada. Minhas lágrimas inundaram-me a perder-me de vista, e eu mal podia me ver naqueles estilhaços de espelho no chão.
Abaixei-me para pegá-los sem nenhum cuidado. Vovô deteve-me. Ensinou-me uma prática lição: vá até o banheiro, lave o rosto e seque-o de frente para o grande espelho. Depois siga até a cozinha, coloque luvas de borracha, pegue uma vassoura e uma pá, varra esses cacos, jogue-os no lixo, guarde todo o material e volte para conversarmos. Sem questionar, logo o fiz. Admirava muito o vovô e considerava-o sábio.
Sentei-me ao seu lado. As lágrimas já não jorravam mais em meu rosto. Dizem mesmo que quando a gente molha as coisas elas diminuem. Reguei a minha dor do jeito que vovô me ensinou e ela encolheu, passando a caber dentro de mim, nas minhas gavetinhas imaginárias. Recebi então um enorme presente ao viver na pele aquela experiência. E ainda fui reconfortada pelas palavras sábias de meu avô:
“Minha netinha querida: na vida, muitos caminhos não irão vingar, nem culminar do modo como você imagina. Eles não serão do modo como você sonhou. E nem por isso você deve deixar de sonhar e ser ingrata com você, nem com a vida. A menos que você queira isso. Quando uma frustração vier, não se deixe abater: arregasse as mangas, proteja-se e enfrente-a. Prepare-se para juntar os cacos e livrar-se deles, com cuidado. E trate de enterrá-los de modo a completar um ciclo, pagando aquela dívida interna de modo maduro. Só assim a imagem inteira do espelho poderá se manter dentro de você. Se você não fizer isso, começará a acumular-se em cacos internos e chegará a se sentir estilhaçada por completo. E se essa for a sua escolha, você terá que arcar com ela, cedo ou tarde.”
Dez anos depois, meu corpo tomou nova forma. Vovô estava largado num leito de hospital. Que injusto: eu tão robusta e ele tão frágil. Reconhecendo a minha impotência diante daquele quadro, não recuei: fui até lá cuidar dele naquele momento tão delicado. Que tristeza... Vovô estava tão envelhecido... Nem parecia o vovô jovem que eu conheci quando criança. Como estava adoecido... Mal conseguia abrir os olhos. Soros, sondas, cateter, urinol, exames, comida mole e sem gosto, enfermeiras, médicos... O barulho daquele ambiente mal o permitia silenciar tamanha dor, e impossibilitava-o de viver tranquilamente seus últimos instantes de vida.
Resolvi fazer daquele momento de finitude um momento de vida. Fiz a brincadeira das mãos para ele e ele sorriu generosamente para mim. Embora quase inteiramente imerso em uma outra dimensão, reconheci ali o seu esforço. Ele bateu numa mão e eu abri: mão vazia. Ele bateu na outra e eu abri e lá estava um pedaço de papel. Tirei uma caneta do bolso e pedi para que ele tentasse dizer suas últimas palavras para que eu pudesse registrar, e quem sabe até deixar por escrito, em letras garrafais, a sua magnitude.
Detive-me diante da maior surpresa da minha vida: num ímpeto de emoção, vovô sugou o ar o mais que pôde e emudeceu para sempre. Eu jamais poderia registrar em palavras aquele glorioso momento.
Cristina Monteiro
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